REVOLUÇÕES DE KUHN

Especial para a Folha, de Paris
(Time, 1/07/1996)

Transcrevemos, a seguir, a notícia publicada pelo periódico paulista “A Folha de S. Paulo” em 28 de julho de 1996, com o título em epígrafe, a propósito do falecimento de Thomas S. Kuhn, que poderá ser útil para nossos leitores, no contexto da violência ou catástrofe epistemológica.

Quando, no final do mês de junho, li sobre a morte de Thomas Kuhn, autor de “A Estrutura das Revoluções Científicas”, meu cérebro mergulhou no passado, nos fabulosos anos 60, cientificamente e politicamente revolucionários, durante os quais nasceram várias das nossas convicções – que hoje renascem, depois de terem sido sufocadas nos horríveis anos 80.

Acredito, porém, que somente o meu cérebro voltou ao passado! Nos jornais europeus e americanos que li, a imagem da “Revolução Kuhniana” seguia um esquema hermenêutico próprio dos anos 80, em vez de tratar da violência epistemológica e prática descoberta por Kuhn.

É sabido, o tema central do seu livro é o conceito de paradigma, ou seja, a idéia de que cada disciplina científica resolve os próprios problemas dentro de uma estrutura pré-estabelecida por pressupostos metodológicos, convenções linguísticas e experimentos exemplares. Em seu desenvolvimento, a “ciência normal” assim constituída se choca com situações de crise, ou seja, confronta-se com a impossibilidade de resolver um número sempre maior de problemas na base do paradigma vigente.

Dos déficits e das turbulências da crise deve portanto nascer um “novo” paradigma. Ele possui as características da inovação radical, porque não somente se amolda aos problemas que estavam na base da crise e permite resolvê-los, mas produz “ex novo” a estrutura do paradigma, devolve-o para a ciência como potência constituinte.

O exemplo fundamental (de Kuhn) é a passagem da astronomia (ou cosmologia) ptomomaica à astronomia (ou cosmologia) galileana. Mas são muitos os exemplo históricos que ele desenvolveu tanto na sua obra principal como nas laterais. A consciência do tempo e da historicidade era assim mostrada como intrínseca ao progresso do saber científico e à vida dos homens, era concebido como motor da consciência (e da forma da consciência) que eles constróem.

É claro que essa hipótese kuhniana se desenvolve contra os conceitos positivistas da ciência que dominavam o saber ocidental, assim como contra os conceitos dialéticos da ciência do mundo socialista: wm ambos o saber científico era visto como um processo linear de descoberta de verdades objetivas e de construção progressiva da sociedade em torno dessa verdade.

Nesse sentido, a função crítica e destrutiva do livro de Kuhn é fundamental. Quando recebemos seu livro, estávamos sofrendo da monstruosa alternativa entre ditaduras, guerras e destruições ideológicas do espírito, que tanto um como outro sistema “normalmente” propunham e que ambos justificavam “do ponto de vista da ciência”.

De outro lado, Kuhn nos convidava a nos colocarmos na mesma situação dos fundadores da ciência copernicana: aquela absurda situação de impotência que sofríamos (pacificamente interiorizada pela “ciência normal”) cessaria; ao contrário, era possível destruir a gaiola do pensamento e da ação que os diversos positivismos e cientificismos nos impunham. Kuhn, um Che Guevara da ciência!

Nesse espírito, não só aceitamos a hipótese kuhniana, mas alguns de nós a levaram adiante, rumo a um anarquismo radical da concepção da ciência e dos modos de vida – como sugeria Feyerabend, aluno de Kuhn.

Todavia a hipótese de Kuhn não era apenas uma forma destrutiva do horizonte pseudo-científico da legislação reacionária do saber e do poder. Era também construtiva. Mostrava a natureza criativa da potência constituinte, da passagem de um paradigma para outro.

Outras pesquisas, desenvolvidas no mesmo período ou em seguida, como as de Prigogine ou de Thom, nos mostravam a eficácia do evento ou da ação subjetiva na construção da ciência.

Nas ciências sociais, E. P. Thompson e M. Tronti acabavam com qualquer determinismo histórico ao mostrar como realmente haviamsido construídas as motivações do agir e das massas. O foco de atenção se transferia então (da relação entre “velho” paradigma e crise) para a análise da relação entre a crise e o “novo” paradigma.

Não era esta a realidade em que vivíamos? Não se tratava de submeter a nossa atividade de pesquisadores e de militantes à experimentação de um novo paradigma? Diante da crise do capitalismo e do socialismo real, qual novo paradigma de “libertação” podia ser construído?

Grande parte da experiência teórica dos anos 60-70 nas ciências sociais e nas práticas da transformação foi vivida dentro da vontade de construir um novo paradigma do comunismo: hoje podemos atribuir o mérito a Kuhn – por nos ter ensinado a função constituinte do paradigma. Fomos derrotados. Mas o novo paradigma não é, ainda hoje, a única chave do conhecimento e a única perspectiva de renovação crítica?

Kuhn nos diz: o paradigma, assim que nasce, é fechado dentro de uma nova “ciência normal”. Aqui se mede a insuficiência de seus ensinamentos e certamente se encaixam os necrológios pós-modernos e reacionários dos quais falávamos no começo. Para esses últimos, são importantes duas coisas: a primeira é relativizar a verdade científica; a segunda é que o saber científico, além de relativizado, seja normalizado e normativo.

Nós sabemos que, no que diz respeito a Kuhn, a primeira afirmação não é correta: se o saber se transforma, se os paradigmas são historicamente simbolizados, não necessariamente são falsos. A ciência copernicana “não é menos, mas mais” verdadeira do que a ciência ptolomaica. A relatividade do saber não é uma desvalorização da verdade, mas uma qualificação de sua potência.

Quanto à segunda afirmação (ser a “ciência normal” resultado estável da transformação do paradigma), essa poderia ser legitimada por Kuhn. Mas somente quando ele esquece parte daquilo que ensinou: que a potência da ciência consiste na constante modificação de seu paradigma na expressão da sua força constituinte e – “last, but not least” – no fato de que os homens são capazes de se reapropriar do paradigma e de transformá-lo em arma de revolução permanente. No saber e na vida.

(Leia todo o artigo com Figuras na Revista Criacionista)

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