O Hexameron

A instituição do sábado ou do repouso do sétimo dia tem sua justificação no hexameron ou na obra de seis dias da criação. Assim rezam as Escrituras: “O sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus … porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra … e ao sétimo dia descansou … por isso abençoou o Senhor o dia sétimo e o santificou” (2). É isto, do ponto de vista bíblico, um fato que não admite nenhuma contestação. A dificuldade, porém, que modernamente contra ele se tem suscitado, é que, segundo os resultados de investigações científicas e de descobertas modernas, feitas mormente no domínio da geologia, esses dias não podem ser interpretados como dias literais, devendo representar períodos mais ou menos longos.

Não é aqui o lugar para entrarmos na apreciação das teorias que levaram a esta conclusão, muitas das quais, seja isto dito de passagem, exigem um maior esforço de fé para ser acreditadas ou tomadas a sério do que a narração genesíaca dos seis dias literais. Elas têm sido de sobra discutidas e ventiladas em todos os seus aspectos, quer os mais graves e mais ou menos aceitáveis, como os absurdos e cômicos. Excusado é nos referirmos também aos múltiplos erros, reconhecidos ou não, a que essas teorias têm dado lugar, e às profundas divergências por elas determinadas entre os próprios cientistas, com relação aos chamados períodos geológicos, alguns dos quais, de concessão em concessão, têm chegado a estabelecer para o mundo uma idade bastante aproximada da que lhe assina a Bíblia (3).

A este respeito seja-nos permitido citar aqui um significativo exemplo. Como é sabido, a ciência geológica se serve para tais cálculos de diversos cronômetros, entre os quais também o da erosão praticada pelas águas dos rios nos leitos rochosos que percorrem (4).

Transferido esse cronômetro para o Niágara, Desor, geólogo suíço, calculou em doze polegadas de profundidade, cada século, a erosão praticada pelas águas no boqueirão desse rio, fazendo remontar assim o seu começo a três milhões e quinhentos mil anos! (5) Lyell, ajudado pelo mesmo cronômetro, entendeu dever fazer uma concessão bastante razoável: calculou o máximo da erosão em doze polegadas por ano, de sorte a estabelecer para esse rio a idade de trinta e cinco mil anos, o que já não é pouco (6).

Bakewell e outros geólogos de nomeada, por sua vez, acharam melhor aumentar mais um pouco a potência erosiva das águas ou diminuir a resistência do seu alvéolo rochoso, acelerando assim a marcha do seu cronômetro: elevaram ao triplo a marcha da erosão e reduziram a dez ou quinze mil anos a idade desse rio (7). Ultimamente L. K. Gilbert do “U. S. Geological Survey” e R. S. Woodward, de Washington, depois de mais acuradas observações e estudos, fixaram a proporção média da erosão em sessenta polegadas por ano; e agora Mr. Gilbert, cuja competência ninguém contesta, afirma que o máximo de tempo decorrido desde a formação dessa catarata não excede de sete mil anos, e que mesmo essa medida pode merecer ainda considerável redução! (8) Dawson chegava ultimamente quase à mesma conclusão(9). É de esperar, pois, que, com o tempo, também os demais cronômetros venham a experimentar idêntica retificação, e finalmente os nossos cálculos estarão com a Bíblia.

Figura 1 – Cataratas do Niágara – Vista do desfiladeiro a jusante, até Queenstown. Ilustração constante do livro de Lyell, “Principles of Geology”, op. cit. p. 215. (constante da versão impressa)

Um fato recente merece ser ainda aqui citado como prova da falácia dessas teorias, mediante as quais se quer exigir de nós uma retificação da Bíblia. É de todos conhecida a teoria das nebulosas, que tem servido também para explicar a origem da Terra e os longos períodos reclamados, segundo essa teoria, para a formação de nosso globo (10).

Não há muito tempo, a estrela Nova em Perseu veio dar aos adeptos dessa teoria uma lição de mestre, invertendo-lhes por completo a mesma à vista de seus olhos com transformar-se de estrela simples que era numa verdadeira nebulosa!(11) E, em vez de reclamar para esse processo involutivo, se é permitido assim chamar-lhe, milhões de anos, como era de mister, a ser verdadeira a dita teoria, a transformação operou-se dentro de poucas semanas, com grande espanto dos que lhe observaram a marcha. O processo mesmo é aos olhos do mundo científico um perfeito enigma. O professor Garret Seviss, notável escritor sobre astronomia, assim se exprime a propósito desse fenômeno no Examiner, de São Francisco, de 29 de dezembro de 1901:

“Isto (a nebulosa em Perseu) é um dos fatos até aqui observados que mais se aproxima de uma nova criação nos espaços … Se pudéssemos imaginar que o processo, que esses movimentos revelam, constitui realmente a formação de qualquer coisa análoga ao nosso sistema solar, teríamos de admitir, com efeito, que a criação do mundo se houvesse efetuado no limitado espaço de meses ou de anos em vez de longos períodos de tempo, e a imaginação seria naturalmente transportada para a narração genesíaca da criação do mundo em seis dias”. E acham que seria mais difícil admitir isto do que aceitar tantas outras teorias que nenhuma certeza oferecem?

O fato é que o caso da Nova em Perseu veio ainda uma vez zombar de nossas teorias científicas, provando quão pouco nos é dado saber acerca das leis que presidiram à criação do mundo. Quanto ao que ensina a Bíblia, é esta uma questão, como muito bem se exprimiu o professor Nicholson (12), de energia versus tempo, acrescentando que podemos tão bem supor esses fenômenos geológicos o resultado de uma causa muito poderosa atuando num período de tempo relativamente curto, como supô-los produzidos por uma força muito menos enérgica exercendo-se num espaço de tempo mais ou menos longo. A tendência pronunciada de nossos cientistas, porém, é dar sempre à atuação dessa força a maior latitude possível no tempo, de sorte a sair ganhando este toda vez que houver de ser confrontado com aquela. Ora, pretender por esse processo limitar o poder de Deus na formação do mundo, baseado unicamente nos fatos incertos observados e nos minguados conhecimentos que possuímos das leis naturais, é a coisa mais curiosa e ridícula que imaginar se pode.

Não há nada, pois, que nos obrigue a prescindir de nossa interpretação ordinária dos seis dias da criação, mas manda a sinceridade que aceitemos os fatos como eles são. A palavra hebraica iom, que é invariavelmente traduzida “dia”, em todas as relações, significa primeiramente o dia considerado em oposição à noite, isto é, o tempo alumiado pelo Sol (13). É nesse sentido que está empregada no versículo 16 do Gênesis, primeiro capítulo, onde se diz que o Sol devia presidir ao dia, e a Lua à noite. Designa além disso o dia civil, isto é, um dia ordinário de vinte e quatro horas, compreendendo uma sucessão regular de luz e trevas, chamadas no versículo 5, respectivamente, dia e noite. À parte essas acepções estritas, a palavra iom é empregada também no sentido translato de “tempo” mais particularmente no plural, mas também no singular, podendo expressar um espaço de tempo indefinido. Assim por exemplo “nos dias de Noé”, quer dizer “no tempo em que Noé vivia”; “no fim dos dias”, devemos entender “ao cabo de um certo lapso de tempo”; kol ha-iom significa não só “todo o dia”, como também “todo o tempo, sempre” (14); be-iom podemos traduzir “no dia”, e também “quando, em qualquer tempo” (15), como nesta passagem: “No dia em que dele comeres, etc.” (16), quer dizer, “quando, em qualquer tempo que dele comeres, etc.” No caso vertente, porém, uma tal hipótese está absolutamente excluída, a não ser que quiséssemos interpretar metaforicamente também as expressões ereb e boqer, (“tarde” e “manhã”) (17) que evidentemente restringem o sentido da palavra iom, não permitindo outra interpretação que a de um dia literal, um espaço de vinte e quatro horas. Ora ereb e boqer não têm ao que consta outro sentido no hebraico que aquele que também nós emprestamos a essas palavras, e mesmo que tivessem não se poderia admitir outro na presente conjunção, porque depois do aparecimento da luz e feita a distinção entre a luz e as trevas, chamando Deus à luz dia e às trevas noite, o relator diz que veio a tarde, depois a manhã, que é o reaparecimento da luz, e que isto perfez um dia (18).

Finalmente é excusado insistir mais sobre este ponto, porque seria curioso que o poder criador, ilimitado como é, exigisse para cada uma das diferentes criações um espaço de tempo mesmo limitado como esse, e de mais a mais, uniforme para todas elas. “Deus falou e foi feito, mandou e logo apareceu”, é como noutro lugar descreve a Bíblia o processo da criação (19). A ação do poder criador prescinde em última análise do fator a que chamamos tempo; mas se a Bíblia, não obstante, assina aos diversos atos criadores intervalos de tempo uniformes e regulares, não é porque eles tomassem justamente esse tempo, mas porque essa ordem e uniformidade obedecem ao intuito de uma instituição religiosa, que o mesmo relatório claramente revela e cujo estudo é o objeto do presente livro (20). O fim do relatório do Gênesis não é, pois, como muitos erradamente pretendem, fazer uma exposição científica da criação do mundo, nem dar-nos um sistema de geologia, botânica, astronomia ou zoologia, e sim dar-nos juntamente com um conhecimento geral da origem das coisas, as bases e a justificação de uma das mais importantes instituições da religião, que é o repouso do sétimo dia.

Muita prevenção tem sido no entanto criada ao relatório do Gênesis com atribuirem-se-lhe idéias que ele absolutamente não inculca e com interpretarem-se erroneamente algumas de suas passagens. A Bíblia, tendo por fim instruir-nos para a salvação, não se ocupa de ciências naturais e, quando aparentemente entra nesse domínio, não é com o fim de enriquecer os nossos conhecimentos a tal respeito, e sim visando algum fim espiritual ou religioso, falando então sempre a linguagem comum dos mortais e tratando as coisas do ponto de vista exclusivo destes. “A Astronomia”, disse Kepler (21), “ensina a conhecer as causas que atuam sobre a natureza, e retifica ‘ex professo’ as ilusões da ótica. A Sagrada Escritura, que ensina as verdades mais sublimes, serve-se das locuções usuais a fim de ser compreendida; não é senão por incidente que ela fala dos fenômenos da natureza, e então emprega os termos de que se serve o comum dos homens. E a Escritura não se teria exprimido de outro modo, ainda quando todos os homens conhecessem perfeitamente a causa das ilusões da ótica; porque nós, os astrônomos, não aperfeiçoamos a ciência astronômica com intenção de modificar o uso da língua, mas queremos abrir as portas à verdade, conservando a mesma terminologia. Nós dizemos com o povo: Os planetas param, voltam … o sol nasce e põe-se, sobe para o meio do céu, etc. … Falamos com o povo, exprimimos o que parece passar-se diante de nossos olhos, posto que nada de tudo isto seja verdadeiro, entretanto todos os astrônomos estão de acordo. Devemos tanto menos exigir da Escritura sobre este ponto, quanto é certo que ela, se abandonasse a linguagem ordinária para tomar a da ciência e falar em termos obscuros, que não seriam compreendidos daqueles que ela quer instruir, confundiria os simples fiéis, e não conseguiria o fim sublime que se propõe”.

O que Kepler aí disse é tão intuitivo, que custa a compreender como é que homens de notável saber pudessem exigir outra coisa à Bíblia. Ora, se o relatório do Gênesis, divertindo o grande fim que tem em vista, falasse a linguagem divina, descrevendo os atos da criação do ponto de vista do seu grande Autor, nem ainda o século XX com toda a sua alardeada sabedoria seria capaz de compreendê-lo, e correria o risco de ser ainda uma vez votado ao desprezo pela simples ignorância deste.

Nem mesmo como objeto de revelação o hexameron poderia ser concebido numa linguagem diversa daquela em que nos é apresentado. O relator, se não assiste em pessoa à criação, tem pelo menos uma revelação desta, e descreve-a, como qualquer vidente, do seu ponto de vista exclusivo, consoante as impressões que tem das coisas que se desenrolam ante os seus olhos, e a própria linguagem atribuida a Deus tem por sua vez de amoldar-se ao que o relator vidente é capaz de perceber e compreender de tudo quanto se passa.

Passando em revista o hexameron, devemos ter presente que há aí coisas que são criadas ou formadas, e outras que simplesmente aparecem, e que, portanto, já existem: Deus falou e foi feito, mandou e logo apareceu (22). Quando o relatório diz que “no princípio criou Deus os céus e a terra” (23), devemos não confundir estes termos. A terra a que se refere não é o nosso planeta como um corpo celeste. Este já existe. O relatório menciona claramente os céus em primeiro lugar, depois a terra, e isto através de toda a Bíblia. É uma circunstância que não devemos desprezar. Os céus foram, portanto, a primeira coisa a ser feita, em seguida a terra. A luz, cujo aparecimento é o ato do primeiro dia, não foi feita; ela já existe, como também já existem o Sol e a Lua, e todo o nosso sistema planetário; ela apenas aparece: “Disse Deus: Haja luz, e houve luz” (24). O hexameron refere-se pois exclusivamente ao que é criado e feito aparecer sobre o nosso planeta.

Como vimos, os céus são a primeira coisa da qual se diz que ela foi feita. A palavra šamajim, traduzida “céus”(25), significa porém literalmente as “águas opostas ou superiores”, as “águas de cima”, a “atmosfera”. Esta é a obra do segundo dia, quando Deus diz: “Faça-se um firmamento no meio das águas (referindo-se à água líqüida que cobre o nosso planeta e à água gasosa ou aos vapores d’água suspensos sobre a mesma), e haja separação entre águas e águas. Fez pois Deus uma expansão no meio das águas e dividiu as águas que estavam debaixo da expansão das águas que estavam por cima da expansão; e assim se fez. Chamou Deus à expansão céus (šamajim, “águas opostas, superiores ou de cima”)” (26).

A terra, que vem em segundo lugar, é o elemento seco que aparece depois de criados os céus, e é a obra do terceiro dia, quando Deus diz: “Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo dos céus (šamajim), e apareça o elemento seco. E chamou Deus ao elemento seco terra (éréts) (27) e ao ajuntamento das águas mares (iammim)” (28),(29). Temos pois em primeiro lugar a criação dos céus (šamajim), depois a da terra (éréts), finalmente a reunião das águas, mares (iammim, plural de iam, mar (30)), concordando isto com a ordem mencionada também no preceito do sábado: “Em seis dias fez o Senhor os céus (šamajim), e a terra (éréts) e o mar (iam)” (31), donde se evidencia que a palavra terra (éréts) no primeiro versículo do Gênesis se refere exclusivamente ao elemento seco que Deus fez aparecer no terceiro dia e não ao nosso globo terrestre. Isto é também corroborado pela seguinte declaração do apóstolo Pedro em sua segunda epístola: “Isto de propósito esquecem, que eram já dantes os céus e a terra que da água e no meio da água subsiste pela palavra de Deus” (32).

Esta terra, antes do ato do terceiro dia, conquanto subsista já dentro da água que cobre o planeta, não apresenta aos olhos do observador forma apreciável: está sem forma e nua (vazia), isto é, despida do ornamento de que se reveste do terceiro dia em diante. Cobrem-na por completo as águas e as trevas. Ao mando de Deus a luz penetra as densas camadas de vapores e com ela o calor; os vapores se expandem e se elevam, ato do segundo dia, criando-se os céus, as águas superiores, que é como Deus chama à expansão. Deus faz então separação entre a luz e as trevas, isto é, opera-se a rotação da Terra e a luz caminha para o seu limite (33): veio a tarde, diz o relator, depois a manhã – a rotação completa-se – reaparece a luz – um dia!(34)

Segue-se a operação do segundo dia, por sua vez intimamente ligada à do terceiro. Os vapores continuando a expandir-se e a elevar-se formam aos olhos do observador o firmamento azul que ele descreve como a expansão separadora entre as águas que vira subir e as águas cá debaixo (35). É o que Deus denomina as águas superiores ou os céus, e que na mitologia egípcia era considerado o mar ou o oceano celeste (36). O volume d’água cá debaixo continua diminuindo até finalmente aparecer o elemento seco, operação que aos olhos do observador se afigura como a reunião das águas num só lugar, pelo que a linguagem divina deve por sua vez amoldar-se inteiramente ao ponto de vista deste. Já que não se trata de dar-nos uma cosmogonia real (37), que não é o fim da Bíblia e que nós nem sequer compreenderíamos, é suficiente um conhecimento dos seus contornos gerais, satisfazendo isto plenamente ao fim que a Bíblia tem em vista. Está quase completa a operação do terceiro dia e criados estão os céus (águas superiores), a terra (o elemento seco) e o mar (a reunião das águas), mas a terra continua vazia.

Os vapores d’água suspensos nos ares, posto que já bastante rarefeitos, apresentam todavia ainda densidade suficiente para ocultar aos olhos do observador o disco do Sol, da Lua e das estrelas. A luz do Sol, coando-se através desses vapores, desenvolve sobre a terra úmida condições propícias à vegetação, mas não ao reino animal. O relatório é perfeitamente coerente. Segue-se a criação do reino vegetal e completa-se a obra do segundo dia, que deixara a terra já com forma, mas ainda núa. A terra recebe agora a sua vestimenta (38). É só então que o observador diz que Deus “Viu que era bom” (39), frase que ele repete depois da obra de cada dia, mas que propositalmente omitira com relação à do segundo, por estar aquela obra ainda incompleta.

Raia o quarto dia. O firmamento já bastante transparente deixa entrever o astro do dia, e depois a Lua e as estrelas. “E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite, e sejam eles para sinais, e para tempos determinados, e para dias e anos. E sejam para luminares na expansão dos céus, para alumiar a terra, e assim foi” (40).

A linguagem está de perfeito acordo com as impressões que tem o relator ao contemplar o aparecimento desses astros, e considerar do seu ponto de vista as suas aparentes funções respectivas. São luminares, um maior outro menor. Não têm ainda designações especiais, mas alumiam a terra, um de dia outro de noite, fazendo separação entre a luz e as trevas. Da operação mesmo, que deu lugar ao seu aparecimento, o relator nada percebe, ele só descreve o que vê, que um é maior e outro é menor (é o relator quem o diz) e acrescenta o que sabe de certo, a saber: que Deus criou esses luminares, e também as estrelas, e os colocou ali na expansão dos céus (é este o seu ponto de vista) para alumiar a terra, para governar o dia e a noite, e fazer separação entre aquele e esta, repetindo com estas últimas palavras tudo o que Deus disse, menos que deviam servir de sinais para tempos determinados (meses) e anos, por estarem estas coisas ainda fora do raio de suas observações de momento (41). A linguagem extremamente concisa não omite particularidade alguma essencial, como também não acrescenta coisas descabidas. Completa-se assim a operação do quarto dia, a qual é descrita somente quanto aos seus efeitos visíveis. Com ela, porém, estão criadas as condições indispensáveis à vida animal, que é a obra do quinto e sexto dias, começando pelas ordens inferiores e rematando pelas superiores. Digo superiores com respeito ao homem. Exceptuado este, o reino animal não obedece a nenhuma classificação especial e tanto assim que onde o mandamento de Deus coloca em primeiro lugar os animais domésticos, em segundo os répteis e por último as feras, o relator mesmo tudo inverte, mencionando em primeiro lugar as feras, em segundo os animais domésticos e por último os répteis (42), mostrando com isto que uma classificação como nós a entendemos não é absolutamente o objeto da revelação. A única distribuição feita é por ordem de habitações, isto é, dos meios em que esses animais estão destinados a viver: primeiro são criados os habitantes das águas, e os voláteis, os animais que voam na expansão dos céus ou das águas superiores; depois os animais da terra, que devem povoar o elemento seco, inclusive o homem, de sorte a ficar tudo compreendido nesta só expressão: “E fez o Senhor os céus, a terra e o mar, e tudo o que neles há” (43). O relator só distingue animais, cujo elemento é a água, animais que voam no espaço, e animais que andam ou se rojam sobre a terra. A ordem em que eles, respectivamente, são criados deve ser-lhe indiferente (44).

A obra do quinto dia, em que são criados os habitantes das águas e do ar, é uma obra em si completa, fechando por isso o relatório com a declaração: “E viu Deus que isso era bom” (45), que o relator, como já o fizemos notar, omitiu com relação à obra do segundo dia, que só ficou completa no terceiro, criando-se os três meios: os céus, a terra e o mar.

Figura 2 – Classificação Bíblica dos Seres Viventes
Tentativa de sistematização, a partir dos textos de Gênesis, Levítico e Deuteronômio, feita pelos Editores
(constante da versão impressa).

A obra do sexto dia, porém, que compreende a criação dos animais terrestres destinados a povoar o elemento seco é dividida em dois atos distintos. Criados que são os animais domésticos, as feras, etc., o relator encerra o primeiro ato da criação desse dia, declarando que “Deus viu que isso era bom” (46), passando a descrever então o segundo ato, que compreende a criação do homem. Posto que o homem seja, como os demais seres terrestres que o precederam, um ente animal, terreno – sendo por isso mesmo criado juntamente com aqueles num mesmo dia, e devendo com aqueles habitar e povoar o elemento seco, a terra – a revelação contudo não o confunde com os primeiros. Separa claramente a sua criação da dos outros animais. Ao passo que todo o resto da criação se opera prontamente a um simples fiat, a do homem é precedida de deliberação e de cálculo. O ser que agora vai ser criado deve ser de algum modo distinto dos demais, ele deve assemelhar-se nalguma coisa ao próprio Criador. “Façamos o homem à nossa semelhança”, disse Deus. Como? – “Domine ele … sobre toda a terra!” (47) Em vez de ser ele uma criatura sujeita como a restante, seja ele, à semelhança de Deus, livre, e domine sobre toda ela! É a representação desta verdade moral, de excepcional alcance, mais um dos grandes objetivos do hexameron.

A dignidade de senhor do mundo visível, recebida de Deus, explica também a razão por que o homem foi criado por último. Devendo ser criado para ser constituído senhor de toda a criatura, era mister que esta o precedesse na existência, como muito bem se exprimiu Gregorio de Nissa: “Não era conveniente que o senhor existisse antes daqueles a quem devia mandar. Só depois que tudo estava preparado para receber o rei é que este devia aparecer. Eis a razão por que o homem foi criado depois de todas as outras coisas; não foi colocado no fim por ser mais insignificante, mas porque, apenas criado, devia ser o rei de todos os seus súditos” (48).

A criação do homem, obedecendo ao plano premeditado de ser este constituído o dominador da Terra, naturalmente se afasta da dos outros animais, para se tornar um ato especial e distinto que torna o homem um ser moral responsável, feição esta pela qual absolutamente não se deve confundir com aqueles. Como tal ele deve naturalmente ser dotado de todas as prerrogativas inerentes às suas funções: deve ser um ente livre, com capacidade suficiente para assumir a responsabilidade de seus atos, e de tudo isto forçosamente se deduz a sua organização superior.

Feita a entrega ao homem, em termos formais, do domínio desta terra, necessário se tornava prevenir também, por uma medida liberal, que ele exorbitasse de suas legítimas funções. Dominando sobre todas as criaturas, não devia estender esse domínio sobre seus semelhantes. Deus, entregando-lhe o domínio de tudo, reservava para Si o domínio daqueles que havia feito à Sua semelhança. O homem devia pois reconhecer sobre si a legítima soberania d’Aquele que o fizera livre, para servir a Deus inteligentemente, conforme os ditames de sua consciência, de modo a não exceder as suas legítimas atribuições exaltando-se a si próprio e sujeitando os seus semelhantes, que é a egolatria e a equiparação de si próprio com Deus, que foi justamente a origem do pecado. Este reconhecimento devia ser um ato de sua própria vontade; fornecendo-lhe Deus apenas o meio de manifestá-lo e de praticá-lo na instituição do sábado.

Artigo publicado naFolha Criacionista 52

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