Earl Aagaard

(Ph.D., Colorado State University) é professor de biologia no Pacific Union College. Seu endereço postal: 3 College Ave., Angwin, California 94508. E-mail: eaagaard@puc.edu Para artigos anteriores sobre este tópico em nossa revista, ver David Ekkens, “Animais e Seres Humanos: São Eles iguais?” Diálogo 6:3 (1994), pp. 5-8, e James Walters, “É Koko uma pessoa?” 9:2 (1997), pp. 15-17 e 34. 

 

A vida humana parece ter perdido sua dignidade e valor. Pergunte a um muçulmano na Sérbia, um ba’hai no Irã, ou um cristão no Sudão. Observe Jack Kevorkian facilitando o suicídio e sendo abraçado como um contribuidor sério e mesmo valioso à sociedade. A questão surge: O que é importante a respeito da natureza humana?

Tempo houve em que podíamos culpar de barbarismo, o pagão, o selvagem, ou os fanáticos. Nomes vêm à mente: Hitler, Ghengis Khan ou Pol Pot. Mas não estamos falando do passado. Estamos à beira do século 21. O conhecimento aumentou: astronautas cruzam o espaço; satélites circulam o globo trazendo informação de toda parte para todos os lugares em poucos momentos; galáxias distantes são objeto de estudo; e genes dentro de nosso corpo são pesquisados em busca de uma chave para os mistérios da vida humana. Mas ainda resta a pergunta — simples, contudo muito profunda: Que há de especial em pertencer ao gênero humano?

Para muitos filósofos, incluindo alguns que se dizem cristãos, a resposta é cada vez mais, muito pouco. Com todo o conhecimento científico de hoje e o progresso técnico, uma visão completa do registro histórico, os seres humanos são ainda tentados a violar direitos humanos básicos.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os julgamentos de Nuremberg expuseram o mal que se oculta no coração humano, e mostraram como a sociedade mais culta e civilizada pode chafurdar em esgotos morais, virtualmente apagando o significado espiritual de “humanidade”. As lições daquela guerra levaram as Nações Unidas a votar, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este documento afirmava a dignidade e igualdade de todo ser humano, exigindo que as sociedades civilizadas protegessem os fracos das agressões dos fortes. A declaração ainda está de pé. Por que, então, estamos falando de direitos humanos e dignidade?

 

O mito das origens

A resposta pode ser achada na explicação científica aceita quanto à origem da vida e sua diversidade, uma explicação que deixa fora o Deus da Bíblia. Esta perspectiva é claramente exposta no livro de James Rachels, Created from Animals: The Moral Implications of Darwinism (Criado Como Descendente de Animais: As Implicações Morais do darwinismo, New York: Oxford University Press). O autor arrazoa como um adepto da evolução naturalista. Sua conclusão, fortemente documentada, é que o darwinismo subverte a doutrina da dignidade humana. Os seres humanos não ocupam um lugar especial na ordem moral; somos apenas uma outra forma de animal.

Esta opinião não é nova. Em 1859, o Bispo Samuel Wilberforce advertiu que o darwinismo era “absolutamente incompatível” com a opinião cristã da condição moral e espiritual do homem. A Igreja Batista do Sul dos Estados Unidos, em 1987, reafirmou a opinião de Wilberforce. Mas não há unanimidade entre os cristãos. Há um século Henry Ward Beecher, o pregador famoso, sugeriu que a perspectiva evolucionista realçava a glória da criação divina. O Papa João Paulo II está disposto a aceitar o processo evolucionário como o meio usado por Deus para criar o corpo humano (mas não o “espírito”, o qual ele insiste que é objeto da criação imediata de Deus).

Mesmo os cientistas estão divididos nesta questão. Alguns (tais como Steven Jay Gould) dizem que o darwinismo e a religião não são incompatíveis, que uma pessoa pode ser ao mesmo tempo teísta e darwinista, enquanto outros (William Provine) afirmam que o darwinismo torna toda religião não só supérflua, mas insustentável.

Rachels argumenta (“Precisa um Darwinista ser Céptico?”) que a teleologia (direção e propósito) na Natureza é irrevogavelmente destruída pelo darwinismo. Sem teleologia, a religião precisa “retrair-se para algo como deísmo, … não mais… apoiando a doutrina da dignidade humana” (pp. 127, 128). Este argumento é forte, e precisa ser refutado se um darwinista religioso quer resgatar o ensino bíblico de que os seres humanos são criados à imagem de Deus e ocupam um lugar especial na ordem divina. Como Rachels nos lembra: “A tese da ‘imagem de Deus’ não se enquadra com qualquer opinião teísta. Requer um teísmo que vê a Deus como ativamente planejando o homem e o mundo como um lar para o homem.”

Em “Quão Diferentes são os Seres Humanos dos Animais?” Rachels conclui que o darwinismo destrói qualquer fundamento para uma diferença moralmente significante entre seres humanos e animais. Se o homem descende de símios por seleção natural, ele pode ser fisicamente diferente de símios, mas não pode sê-lo de modo essencial. Certamente não pode ser em qualquer aspecto que dê ao homem mais direitos do que a qualquer animal. Nas palavras de Rachels, “não se pode fazer distinções em moralidade onde nenhuma existe de fato”. Ele chama sua doutrina de “individualismo moral”, e rejeita “a doutrina tradicional da dignidade humana” junto com a ideia de que a vida humana tenha qualquer valor inerente que os seres não humanos careçam.

 

Individualismo moral

Em “Moralidade Sem Que os Seres Humanos Sejam Especiais”, Rachels trata primeiro da igualdade humana, e depois a rejeita! Os seres humanos podem ser “tratados como iguais” somente se não houver “diferenças notáveis” entre eles. Essas “diferenças notáveis” poderiam ser usadas para distinguir gêneros, raças, religiões e indivíduos. Aceitando conceitos darwinistas ele estende a análise aos animais, não admitindo superioridade humana automática sobre coelhos, porcos ou baleias. Sob “individualismo moral”, quando confrontado com o uso de um ser humano ou de um chimpanzé para um experimento médico letal, não mais podemos decidir a questão arguindo que o chimpanzé não é humano. “Teríamos de perguntar o que justifica usar este chimpanzé, e não aquele ser humano, e a resposta teria de ser em termos de suas características individuais, e não simplesmente por pertencerem a este ou àquele grupo” (p. 174).

Considerando o papel crucial de “diferenças notáveis” nesta ética, a gente procura alguma definição formal do termo. Rachels não dá nenhuma. Em vez disso obtemos “algo de como o conceito opera” num exemplo de testar cosméticos nos olhos de coelhos, e um palavreado difuso. Isto não é defesa contra o egoísmo e o mal que vemos em nós mesmos e em nossos semelhantes.

A experiência demonstra que qualquer norma moral fraca e relativista será torcida em qualquer forma que seja necessária para nos permitir fazer o que quisermos a nosso próximo. Há muitos exemplos: escravidão; perseguição racial e religiosa; um milhão de abortos por ano nos Estados Unidos; a epidemia de abandono, abuso e morte de bebês; leis que permitem suicídio assistido e eutanásia; expurgo étnico, etc. Precisamos ter uma norma clara de nossas obrigações para com todo membro da família humana. Essa é a diferença entre moralidade e amoralidade. Não há terreno neutro.

 

Darwinismo e amoralidade

A conexão entre darwinismo e amoralidade é agora explícita. Na New York Times Magazine de 3 de novembro de 1997, Stephen Parker escreveu sobre “psicologia evolucionista”. Ele nos diz que “filósofos da ética concluíram que… nossos neonatos imaturos não possuem o direito à vida mais do que um camundongo”, e alega que “o infantocídio pode ser o produto de trauma maternal” visto “ter sido praticado e aceito na maioria das culturas através da história.” Ele assim liga o infanticídio diretamente a nossos ancestrais e à luta pela sobrevivência darwiniana, que por vezes requer que as mães matem seus filhos a fim de promover seu futuro reprodutivo. Em artigos como este, aquilo que outrora era impensável é apresentado como razoável e aceitável. Estamos sendo amaciados para uma mudança na moralidade da comunidade — que mantém que alguns seres humanos merecem respeito e proteção, mas outros não, e podem ser mortos com impunidade. Podemos ver esse processo em operação hoje, nos pronunciamentos acadêmicos, e cada vez mais na mídia popular.

Há apenas 50 anos, toda nação com voto nas Nações Unidas rejeitou este modo de pensar. A ética que emerge no Ocidente é um repúdio direto da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em seu preâmbulo, a Assembléia Geral das Nações Unidas unanimemente (com oito abstenções) declarou que “o fundamento da liberdade, justiça e paz do mundo” é “o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana.” Nos próprios Artigos, achamos que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (Artigo 1); “Cada um possui todos os direitos e liberdades anunciadas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie” (Artigo 2); “Todos têm direito à vida, liberdade e segurança de sua pessoa” (Artigo 3); “Todos têm direito ao reconhecimento em toda parte como uma pessoa diante da lei” (Artigo 6); e “Todos são iguais diante da lei e têm direito sem nenhuma discriminação à igual proteção da lei” (Artigo 7). Esta linguagem não é equívoca; não pode haver confusão quanto a seu significado. Aceitar o que Rachels e Pinker estão oferecendo significa voltar as costas à sabedoria do passado.

Maturidade (e nossa segurança) exige reflexão honesta. Um sistema de ética baseado em relativismo moral sempre terminará com o forte no poder e o fraco debaixo de seu calcanhar. A filosofia darwinista, levada à sua conclusão lógica, não nos leva a parte alguma, e isso devia bastar para que a rejeitássemos. Talvez não devêssemos estar surpresos de ver os darwinistas abraçando uma filosofia tão cruel e utilitária, mas o que mais surpreende é o número de moralistas, filósofos e outros que se identificam como cristãos mas insistem que adotemos uma ética tão diferente da de Cristo.

O argumento a favor do relativismo moral é sutil à primeira vista. Freqüentemente começa reafirmando a verdade biológica (e bíblica) de que somos humanos desde o momento da concepção. Mas, depois nos é dito que há uma diferença entre um “ser humano” e uma “pessoa”, e que “personalidade” é a categoria que um ser humano precisa alcançar a fim de ter direito à vida. As qualificações para “personalidade” variam — mas geralmente incluem a posse de consciência de si mesmo como condição necessária para ser uma “pessoa” com pleno status moral (por exemplo, ter o direito de não ser morto). Naturalmente nenhum ser humano nasce com consciência de si mesmo, e muitos de nós podemos perder a consciência, temporária ou permanentemente, devido a trauma, enfermidade ou idade.

O individualismo moral (ou a ética da “personalidade”) e a declaração das Nações Unidas dos Direitos Humanos colidem; são inteiramente incompatíveis. A Declaração das Nações Unidas é fundada sobre a tradição moral judaico-cristã — uma tradição que remonta a milênios. O “individualismo moral” pretende ser fundado na razão humana, e é expresso em afirmações que começam com: “Eu argumento….” “Eu vejo…”, ou “Eu sustento …”. O “individualismo moral” propõe que tanto os seres humanos como os animais devem ser julgados pelos mesmos critérios relativistas. Neste universo moral, seres humanos perderam seus direitos inalienáveis à vida, algo que os cristãos defendem na base da declaração: “Criou Deus o homem à Sua imagem: à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou” (Gênesis 1:27).

 

Tirado do pedestal

Tirando os seres humanos do pedestal de dignidade sobre o qual a Bíblia os colocou tem implicações para todos, não somente para os pacientes em estado comatoso, os neonatos com defeitos, os velhos enfermiços, e outros diferentes de “nós”. Debaixo da ética do “individualismo” não há princípio que impeça que uma raça classifique outras raças como não plenamente humanas e de escravizá-las ou eliminá-las. Não há princípio responsabilizando aqueles que procuram degradar os outros ao status de “não-pessoas”. Não há princípio condenando os pais que recorrem a testes pré-natais para determinar o sexo de um feto e depois abortam se for menina. Não há princípio para impedir que uma sociedade determine que o pleno status humano não seja atingido antes dos 3 ou 4 anos, e de fundar centros para eliminar as “não-pessoas” indesejáveis. Não há princípio para impedir a clonagem de um indivíduo, ou o uso do ser humano como um estoque de órgãos avulsos. Podemos recuar destas sugestões, mas a verdade é que quando abandonamos o imperativo bíblico de que a vida humana inocente é sagrada e não pode ser tocada, estamos todos debaixo de risco, porque quando os fortes dominam, “a força faz o direito”.

Quando moralistas cristãos chegam às mesmas conclusões que os darwinistas sobre nossas obrigações para com o nosso próximo, é tempo de pensar cuidadosamente. Deus nos criou, e Ele conhece o mal de que somos capazes. Por esta razão, Ele nos instruiu a tratar todos os seres humanos como dignos de respeito. Nem o “individualismo moral” nem a ética da “personalidade” é compatível com a interpretação tradicional das Escrituras, e isso deveria ser razão suficiente para rejeitá-los. Mas, além disso, para aqueles cuja fé é fraca, a história oferece muitas demonstrações de que antes de qualquer matança tem havido uma divisão da população em “nosso grupo” (protegido) e “os demais” (não protegidos) que torna permissível ir adiante com a matança. A maior parte dos moralistas relativistas não tem esta intenção. Estão simplesmente tentando criar uma base não-dogmática, racionalista para um comportamento que eles julgam apropriado.

Creio que James Rachels tem razão em seu argumento: Uma pessoa não pode ser darwinista e manter de modo lógico a opinião tradicional de que a vida humana é sagrada. A pergunta mais imediata para os cristãos parece ser mais relevante: Pode uma pessoa crer que a vida humana não é sagrada e ainda ser cristão?

 

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