Parte 1

Introdução

Neste artigo, pretendo explorar um pouco a idéia inspirada na canção Imagine, do cantor e compositor John Lennon. Assim como ele, muitas pessoas imaginam que o mundo seria um lugar melhor se não existisse religião[1]. Richard Dawkins, que se considera cético e racional, é uma dessas pessoas.

Portanto, ao invés de citar alguns fatos históricos e dar minha própria interpretação, me propus a afastar a cortina do tempo e dar uma olhada mais de perto em alguns acontecimentos não muito comentados e facilmente esquecidos de um dos capítulos mais intensos da história humana: a Revolução Francesa durante o Reino do Terror.

É importante refletir que, ao passo que geralmente se considera a Inquisição e o Nazismo como capítulos escuros da História, a Revolução Francesa, em si, é vista como um marco da liberdade.

Aqui questiono essa interpretação com base nos acontecimentos que afetaram os que viveram e morreram naquele período. O que me leva a refletir um pouco sobre um problema humano mais básico e profundo: a existência do mal.

Imagine…

No prefácio de seu livro The God Delusion (Deus, um delírio), Richard Dawkins, a propósito da música de Lennon, Imagine, comenta sobre como ele imagina que seria um mundo sem religião:

“ ‘Imagine um mundo sem religião.’ … As torres gêmeas do World Trade Center estariam visivelmente presentes.

“Imagine, com John Lennon, um mundo sem religião. Imagine nenhum homem bomba suicida, nenhum 11/9, nenhum 7/7, sem Cruzadas, sem caça às bruxas, sem Conspiração da Pólvora, sem divisão da Índia, sem guerras entre israelenses e palestinos, sem massacres de sérvios, croatas e muçulmanos, sem perseguição de judeus como ‘assassinos de Cristo’, sem ‘problemas’ na Irlanda do Norte, sem ‘crimes por honra’, sem televangelistas com ternos brilhantes e cabelos bufantes extorquindo dinheiro de pessoas crédulas (‘Deus deseja que você doe até que doa’). Imagine nenhum Taliban para explodir estátuas antigas, nenhuma decapitação pública de blasfemadores, nenhuma flagelação da pele feminina devido ao crime de mostrar uma polegada dela.” (Tradução Livre)

O mundo que John Lennon idealiza em sua música é um mundo sem religião, sem Céu ou Inferno, sem posses, sem divisão de países, sem ganância e com as pessoas vivendo apenas para o presente, em paz em uma fraternidade. Em outras palavras, basta acabar com a ideia de uma vida futura de recompensas e punições, acabar com a religião, e o mundo ficará automaticamente muito melhor, talvez até possam acabar as divisões e ganâncias, porque, afinal, o que faz tudo isto existir é a religião.

Talvez não fosse exatamente assim que Lennon pensasse, pode ser que apenas considerasse que a religião era um mal entre outros. De qualquer forma, a música passa essa impressão, assim como Dawkins em seu livro. Como se os seres humanos não lutassem e discordassem por outros motivos que não religião. Os problemas mencionados por Dawkins certamente não teriam ocorrido, mas outros, por outros motivos, poderiam substituí-los. Ou seria que o problema da humanidade é ter religião, que sem ela, a humanidade seria um paraíso cheio de pessoas boas vivendo em paz como Lennon cantava?

Dawkins acredita que não precisamos de Deus para sermos bons. Ele apoia sua opinião em uma pesquisa em que pessoas responderam perguntas típicas sobre dilemas morais.

“A conclusão principal do estudo de Hauser e Singer foi a de que não há diferença estatisticamente significativa entre ateus e crentes religiosos ao tomar estas decisões. Isto parece compatível com a opinião que eu e muitos outros mantêm de que não necessitamos de Deus para sermos bons – ou maus.” (The God Delusion, p. 195, tradução livre)

A questão com a qual eu gostaria de encerrar esta seção é a seguinte: Se a maioria das pessoas têm plena consciência de quais são as escolhas corretas a ser feitas, como demonstra o estudo acima citado, porque o mundo não é um lugar melhor?

Parte 2

Na seção anterior introduzimos o assunto a partir da visão de Dawkins e da música Imagine de John Lennon. Terminamos aquela parte com a questão: Se a maioria das pessoas têm plena consciência de quais são as escolhas corretas a ser feitas, como demonstra o estudo acima citado, porque o mundo não é um lugar melhor?

Como seria um Mundo sem Religião?

Será que basta que as pessoas tenham consciência do que é correto para que ajam assim? Outra questão: As crenças não afetam o modo como elas realmente se comportarão quando estiverem de fato vivendo uma questão de dilema moral que não seja hipotética e que represente riscos reais para elas?

A propósito, parece bastante óbvio que meramente possuir uma religião não torna as pessoas boas, pois pessoas podem acreditar em coisas ruins derivadas de sua religião ou da distorção dela e o mundo está cheio de exemplos disto. Contudo, as pessoas que praticam o mal em nome de uma religião se tornaram más por causa de sua religião? Se o problema for a religião, então todas as pessoas sem religião deveriam ser boas!

Não precisamos imaginar como seria um mundo sem religião como o fez John Lennon. Já temos algumas pequenas amostras espalhadas pela história. Podemos afastar um pouco a cortina do tempo e olhar para a França durante a Revolução Francesa, no período em que a religião foi expulsa de seus domínios, durante a fase do Reino do Terror.

John S. C. Abbott, no segundo volume de seu French Revolution of 1789 – As Viewed in the Light of Republican Institutions, justifica os atos realizados durante a Fase do Terror na França,
com as seguintes palavras:

“A história da Revolução Francesa tem sido contada também, muito frequentemente, neste espírito, encobrindo as atrocidades dos opressores e ampliando a falta de humanidade do oprimido. Conquanto a verdade exija que toda a violência de um povo escravizado, em desespero rompendo seus laços, deva ser fielmente retratada, a verdade, não menos imperiosamente, exige que a falta de misericórdia dos orgulhosos opressores, esmagando milhões por eras, e incitando uma nação inteira na loucura do desespero, deveria ser também imparcialmente descrita.” (Tradução Livre, p. 335.)

E o que ele diz é verdadeiro, até certo ponto. Porque durante séculos a Inquisição e os desmandos de reis e nobres oprimiram o povo pobre, porém isto não ocorria somente na França. Apesar disto, uma certa organização, ainda que injusta e cruel, permitia que os povos seguissem existindo. As cenas descritas por esse autor, e outros, retratam a implosão de uma civilização. Tão autodestrutivos se tornaram os atos que, eles mesmos, teriam extinguido a própria nação se não houvessem cessado. Como podemos ver das seguintes descrições:

“O espírito ousado dos girondinos foi manifesto nas palavras de Vergniaud:

‘Temos testemunhado’, disse ele, ‘o desenvolvimento desse estranho sistema de liberdade em que nos é dito:
‘Vocês são livres, mas pensem conosco, ou os denunciaremos à vingança do povo, são livres, mas inclinem a cabeça ao ídolo que adoramos, ou os denunciaremos à vingança do povo, são livres, mas unam-se a nós em perseguir os homens cuja probidade e inteligência tememos, ou os denunciaremos à vingança do povo.’ Cidadãos! temos motivos para temer que a Revolução, como Saturno, devorará sucessivamente todos os seus filhos, e apenas engendrará despotismo e as calamidades que o acompanham.’ (Ibidem, p.p. 332-333. Tradução Livre)

“A insurreição monarquista em La Vendée, depois de um longo e terrível conflito, foi esmagada. Nenhuma linguagem pode descrever os horrores de vingança que se seguiram. O relato da brutalidade é demasiado horrível para ser contado. Demônios não poderiam ter sido mais infernais em crueldade. ‘A morte pelo fogo e pela espada’, escreve Lamartine, fez ruído, espalhou sangue e deixou corpos para serem enterrados e contados. As silenciosas águas do Loire estavam mudas e não prestariam contas. Unicamente o fundo do mar saberia o número de vítimas. Carrier tornou os marinheiros tão impiedosos quanto ele próprio. Ordenou-lhes, sem muito mistério, perfurar certa quantidade de embarcações atracadas com buracos, de modo a afundá-las com suas cargas vivas em partes do rio. ‘Estas ordens foram a princípio executadas secretamente e sob o aspecto de acidentes de navegação. Porém, logo estas execuções navais, das quais as águas do Loire foram testemunhas até sua foz, se tornaram um espetáculo para Carrier e seus cortesãos. Ele forneceu uma galé de prazer, a qual ele deu de presente para seu cúmplice Lambertye, sob o pretexto de vigiar as margens do rio. Esta embarcação, adornada com todos os requintes de mobiliário, provida com todo o vinho e itens de banquete, se tornou o teatro principal destas execuções. O próprio Carrier embarcou ali algumas vezes, com seus carrascos e cortesãos, para viajar pela água. Enquanto se entregava às alegrias do amor e do vinho no convés, suas vítimas, encerradas no porão, viam, a um dado sinal, as comportas se abrirem e as ondas do Loire engolirem-nos. Um gemido abafado anunciava para a tripulação que centenas de vidas tinham dado seu último suspiro sob seus pés. Eles continuavam suas orgias sobre esse sepulcro flutuante. ‘Algumas vezes Carrier, Lambertye e seus cúmplices se regozijavam no cruel prazer deste espetáculo de agonia.
Eles faziam com que suas vítimas de ambos os sexos subissem para o convés. Despojados de suas vestes, eles os atavam face a face – um sacerdote com uma freira, um jovem com uma jovem. Suspendiam-nos, assim nus e entrelaçados, por uma corda que passava sob seus ombros através de um bloco da embarcação. Divertiam-se em horríveis sarcasmos com esta paródia de casamento na morte, e, então, afundavam as vítimas no rio. Este esporte canibal foi denominado ‘Casamentos Republicanos’. …

“As prisões de Paris estavam agora repletas de vítimas. Instruções municipais, emitidas por Chaumette, catalogaram como segue os que deveriam ser presos como pessoas suspeitas:
1. Os que, por discursos enganosos, extinguissem a energia do povo. 2. Os que enigmaticamente deplorasssem o quinhão do povo e propagassem más notícias com afetado pesar. 3. Os que, silenciosos a respeito das faltas dos monarquistas, falassem contra as faltas dos patriotas. 4. Os que tivessem piedade daqueles contra os quais a lei era obrigada a tomar medidas. 5. Os que se associassem com aristocratas, sacerdotes e moderados e tivessem interesse em seu destino. 6. Os que não tivessem tido parte ativa na Revolução. 7. Os que tivessem recebido a Constituição com indiferença e tivessem expressado temores com respeito a sua duração. 8. Os que, embora não tivessem feito nada contra a liberdade, não tinham feito nada por ela. 9. Os que não assitissem às sessões. 10. Os que falassem com desprezo das autoridades constituídas. 11. Os que tivessem assinado petições contra-revolucionárias. Os partidários de La Fayette e os que marcharam sob o comando no Campo de Marte.

“Havia apenas poucas pessoas em Paris que não eram passíveis de ser presas, pelas maquinações de algum inimigo, sob alguma destas acusações. Muitos milhares foram logo encarcerados.” (The History of the French Revolution – 1789 -. Louis Adolphe Thiers, vol. 3, p.p. 342-345. London, 1895. Tradução Livre)

” ‘As miseráveis vítimas em Nantes’, diz Mr. Alison, ‘foram mortas com punhais nas prisões ou levadas em uma embarcação e afogadas juntas no Loire. Em uma ocasião uma centena de sacerdotes foi tomada junta, despojada de suas vestes e precipitada nas ondas. Mulheres em gravidez adiantada, crianças com oito, nove e dez anos de idade foram atiradas juntas na corrente, ao lado das quais, homens armados com sabres foram colocados para cortarem suas cabeças se as ondas as lançassem não afogadas na praia. Em uma ocasião, por ordens de Carrier, vinte e três dos monarquistas – em outra – vinte e quatro, foram guilhotinados juntos sem qualquer julgamento. O carrasco protestou, mas foi em vão. Entre eles havia muitas crianças com sete ou oito anos de idade e sete mulheres; o carrasco morreu dois ou três dias após, com horror do que ele mesmo tinha feito. Tão grande era a multidão de cativos que foram trazidos de todos os lados que os carrascos se declararam exaustos pela fadiga e um novo método de execução foi planejado. Duas pessoas de sexos diferentes, geralmente um idoso e uma idosa, desprovidos de qualquer espécie de roupa, eram atados juntos e atirados no rio. Foi determinado por documentos autênticos que seiscentas crianças pereceram por este tipo de morte desumana; e tal foi a quantidade de cadáveres acumulados no Loire, que a água se tornou contaminada. As cenas nas prisões que precederam estas execuções excedem todas as mais terríveis que romances tenham concebido. Em uma ocasião o inspetor entrou na prisão procurando por uma criança, onde, na noite anterior, haviam sido deixadas acima de três mil crianças; elas tinham todas partido pela manhã, tendo sido afogadas na noite precedente. Para todos os representantes dos cidadãos em favor destas vítimas inocentes, Carrier apenas respondeu: ‘Elas são todas víboras, deixai-as serem sufocadas.’ Trezentas jovens de Nantes foram afogadas por ele em uma noite: muito longe de terem tido qualquer parte em discussões políticas, elas eram da desafortunada classe dos que vivem pelos prazeres de outros. Em outra ocasião, quinhentas crianças de ambos os sexos, a mais velha das quais não tinha ainda quatorze anos, foram levadas para o mesmo local para serem baleadas. A pequenez de sua estatura fez com que a maioria das balas da primeira descarga voasse sobre suas cabeças; elas soltaram seus liames, apressaram-se para as fileiras dos executores, se agarraram aos seus joelhos e pediram por misericórdia. Contudo, nada podia suavizar os assassinos. Eles as mataram mesmo enquanto jazendo a seus pés.
Uma mulher deu à luz uma criança no cais; mal tinham cessado as agonias do parto, quando ela foi empurrada, com o inocente recém-nascido, para o barco fatal! Quinze mil pessoas pereceram em Nantes sob as mãos dos executores, ou de doenças na prisão, em um mês. O número total de vítimas do Reino do Terror naquela cidade excedeu os trinta mil.” (French Revolution of 1789 – As Viewed in the Light of Republican Institutions, p.p. 533, 534. New York, 1887. Tradução Livre.)

Estes relatos fazem parte de uma série que será apresentada aqui. Continuaremos na parte 3.

Parte 3

Nas seções anteriores introduzimos o assunto a partir da visão de Dawkins e da música Imagine de John Lennon. Também apresentamos relatos históricos de um período crucial: A Revolução Francesa, considerada marco da liberdade. Foi também um período que se destacou pela falta da religião. Seguimos aqui com os relatos da época.

“Não podemos dar melhor relato do estado de Paris naquela época do que nas palavras de Desodoards, um calmo e filosófico escritor, que tinha ardentemente esposado a causa da Revolução, e que, consequentemente, não será suspeito de exagero.
‘O que então’, diz ele, ‘foi este governo revolucionário? Cada direito, civil e político, foi destruído. Liberdade de imprensa e de pensamento estavam no fim. O povo todo estava dividido em duas classes, os privilegiados e os proscritos. A propriedade era descontroladamente violada, lettres de cachet [cartas assinadas pelo rei e secretário de estado autorizando a prisão de alguém] foram restabelecidas, o asilo das habitações exposto à mais tirânica inquisição e a justiça despojada de toda aparência de humanidade e honra. A França estava coberta de prisões; todos os excessos de anarquia e despotismo lutando em meio a uma confusa multidão de comitês; terror em cada coração; o cadafalso devorando uma centena cada dia e ameaçando devorar um número ainda maior; em cada casa melancolia e pranto e, em cada rua, o silêncio da tumba.

‘A guerra era travada contra as emoções mais ternas da natureza. Fosse uma lágrima derramada sobre a tumba do pai, esposa ou amigo, isto era, de acordo com estes jacobinos, um assalto à República. Não se regozijar quando os jacobinos se regozijavam era trair a liberdade. Toda a turba de baixos oficiais de justiça, alguns dos quais mal podiam ler, divertia-se com as vidas de homens sem a menor vergonha ou remorso. Frequentemente um ato de acusação que se destinava a uma pessoa recaía sobre outra. O oficial apenas mudava o nome ao perceber seu erro e, frequentemente, não mudava. Enganos da mais inconcebível natureza eram cometidos com impunidade. A duquesa de Biron foi julgada por um ato preparado contra seu agente. Um jovem de vinte anos foi julgado por ter, como foi alegado, um filho portando armas contra a França. Um rapaz de dezesseis, cujo nome era Mallet, foi preso sob uma acusação de um homem de quarenta, chamado Bellay. ‘Qual a sua idade?’ inquiriu o presidente, olhando-o com alguma surpresa. ‘Dezesseis’, respondeu o jovem. ‘Bem, você tem plenamente quarenta no crime’, disse o magistrado; ‘levem-no para a guilhotina.’ …

“Em meio a tais cenas não é estranho que todo o respeito pelo Evangelho de Jesus Cristo foi renunciado. Os jacobinos de Paris lotaram a Convenção, exigindo a abjuração de todas as formas de religião e todos os modos de adoração. Eles governavam a Convenção com controle despótico. A Comuna de Paris, investida como a polícia local da cidade, passou leis proibindo o clero de executar cultos religiosos fora das igrejas. Ninguém a não ser amigos e parentes eram permitidos seguir os restos do morto à sepultura. Todos os símbolos religiosos foram ordenados ser apagados dos cemitérios e serem substituídos por uma estátua do sono. As seguintes divagações de Anacharsis Cloots, um rico barão da Prússia, que denominou-se o orador da raça humana, e que foi um dos mais conspícuos dos agitadores jacobinos, fortemente exibe o espírito da época.
‘Paris, a metrópole do globo, é o local apropriado para o orador da raça humana. Não deixei Paris desde 1789. Foi então que redobrei meu zelo contra os pretensos soberanos da Terra e do Céu. Ousadamente preguei que não existe outro deus a não ser a Natureza, nenhum outro soberano a não ser a raça humana – o povo deus. O povo é suficiente para si mesmo. A Natureza não se ajoelha perante ela própria. A religião é o único obstáculo para a felicidade universal. Chegou a hora de destruí-la.’

“A corrente popular em Paris então se impõe fortemente contra toda religião. …

“A Convenção indicou um comitê de doze homens, denominado de o Comitê de Segurança Pública, e o investiu de poder ditatorial. Todo o poder revolucionário estava agora alojado em suas mãos. Eles indicaram subcomitês como lhes agradava e governaram a França com terrível energia. O Tribunal Revolucionário era apenas um de seus comitês. Em todos os departamentos eles estabeleceram suas agências. A própria Convenção se tornou impotente contra este espantoso despotismo. Esta ditadura foi energicamente apoiada pelo populacho de Paris; e o governo da cidade de Paris era composto dos mais violentos jacobinos, que estavam em perfeita fraternidade com o Comitê de Segurança Pública. St. Just, que propôs na Convenção o estabelecimento desta ditadura, disse:
‘Vocês não devem mais mostrar qualquer indulgência para com os inimigos da nova ordem de coisas. A liberdade deve triunfar a qualquer custo. Nas atuais circunstâncias da República, a Constituição não pode ser estabelecida, isto garantiria impunidade a ataques à nossa liberdade, porque ela seria deficiente na violência necessária para restringi-los.’ ” (The French Revolution of 1789 – as viewed in the light of republican institutions. Vol 2, p.p. 358, 360-361)

“A seção de l’Homme-Armé declarou que não reconhecia nenhuma outra adoração além da verdade e da razão, nenhum outro fanatismo além da liberdade e igualdade, nenhuma outra doutrina além daquela da fraternidade e das leis republicanas decretadas desde 31 de maio de 1793. A seção de La Réunion declarou que faria uma fogueira com todos os confessionários e todos os livros usados pelos católicos e que fecharia a igreja de St. Mary. … Assim as seções, tomando a iniciativa, abjuraram a fé católica como a religião estabelecida e se apossaram de seus prédios e seus tesouros como pertencendo ao domínio comunal. Os deputados em missão nos departamentos já tinham incitado um grande número de comunas a se apoderarem da propriedade móvel das igrejas, a qual, eles disseram, não era necessária para a religião e, a qual, além disso, como toda a propriedade pública, pertencia ao Estado e poderia, portanto, ser usada conforme sua vontade. … Foram em procissão para a Convenção e a turba, indulgindo em sua inclinação pelo burlesco, caricaturou da maneira mais ridícula as cerimônias da religião, e teve tanto prazer em profaná-las quanto tinha tido anteriormente em celebrá-las. Homens, usando sobrepeliz e vestes sacerdotais, vieram cantando Aleluias e dançando o Carmangnole para o tribunal da Convenção; onde eles depositaram a hóstia, os crucifixos e as estátuas de ouro e prata; fizeram burlescos discursos e, algumas vezes, dirigiram as mais singulares exclamações para os próprios santos. ‘Oh, vós!’ exclamou uma delegação de St. Denis, ‘oh, vós instrumentos de fanatismo, abençoados santos de todos os tipos, sede afinal patriotas, erguei-vos em massa, servi o país por irdes para a Fundição serdes derretidos e dai-nos neste mundo aquela felicidade que desejáveis obter para nós no outro! … A pedido de Chaumette, foi resolvido que a igreja metropolitana de Notre Dame deveria ser convertida em um edifício republicano denominado Templo da Razão. … O primeiro festival da Razão foi realizado com pompa no 20 de Brumário (10 de novembro). Foi assistido por todas as seções, junto com as autoridades constituídas. Uma jovem mulher representava a deusa da Razão. … Discursos foram feitos e hinos cantados no templo da Razão; então se dirigiram para a Convenção e Chaumette falou nestes termos:
‘Legisladores! – o fanatismo tem dado lugar a razão. Seus olhos ofuscados não podem suportar o brilho da luz. Neste dia uma imensa multidão se reuniu sob aquelas abóbadas góticas, as quais, pela primeira vez, ecoaram a verdade. Ali a França celebrou a única verdadeira adoração, a da liberdade, da razão. Ali concebemos desejos pela prosperidade das armas da república. Ali abandonamos os ídolos inanimados pela razão, por aquela imagem animada, a obra-prima da Natureza.’ ” (The history of the French Revolution, 1789-1800, vol. 3, p.p. 241-243. London, 1895. Tradução Livre.)

“Cem mil prisões e algumas centenas de condenações tornavam o aprisionamento e o cadafalso sempre presente nas mentes de vinte e cinco milhões de franceses. Eles tinham de suportar pesados impostos. Se, por uma classificação perfeitamente arbitrária, eles fossem colocados na lista dos ricos, eles perdiam durante aquele ano uma parte de sua renda. Algumas vezes, a pedido de um representante ou de um ou outro agente, eram obrigados a desistir de suas colheitas, ou de suas mais valiosas propriedades de ouro e prata. Não ousavam mais exibir qualquer luxo ou condescender com prazeres ruidosos. … Nunca tinha o poder derrubado com maior violência os hábitos do povo. Para ameaçar todas as vidas, dizimar todas as fortunas, fixar o padrão de todas as trocas, dar novos nomes a todas as coisas, abolir as cerimônias da religião, indisputavelmente, é a mais atroz das tiranias, sem levarmos em conta o perigo do Estado, a inevitável crise do comércio e o espírito do sistema inseparável do espírito de inovação. (Ibidem, p.p. 244-245. Tradução Livre)

A ironia de tudo isso é que, enquanto na prática, ninguém desfrutou de verdadeira liberdade – os que estavam no poder em um dia eram os próximos a ir para a guilhotina em outro – de real
igualdade, se não considerarmos que estavam todos igualmente em péssima situação, e de uma fraternidade que não fosse ficção, eles realmente acreditavam que estavam estabelecendo tudo isso! Então, enquanto a justiça, a liberdade e os mais básicos dos direitos humanos eram todos pisados a pés, as pessoas cegavam-se a si mesmas com palavras como liberdade, igualdade e fraternidade! Tenho certeza de que se fosse possível viajar no tempo e realizar a pesquisa citada mais acima por Dawkins, os franceses daquele tempo, em sua maioria, dariam as mesmas respostas moralmente boas.
Eles, inclusive, se consideravam totalmente racionais e respeitadores da liberdade e direitos
humanos (só que não!)

Esse estado de coisas não durou por muito tempo na França, pois era um mecanismo autodestrutivo, os líderes extremistas acabaram todos na guilhotina como os milhares que foram condenados por eles. E outras vozes foram ouvidas depois deles.

“Camille Jordan se tornou o órgão das queixas que havia por toda a parte das infrações contra a liberdade de culto. Ele pronunciou um memorável discurso em favor de indiscriminada liberdade de consciência para todos os cidadãos e não temeu pegar emprestados argumentos da excelência do Cristianismo. … ‘Se vocês desejam erigir um dique contra o temível progresso do crime e desordem, devem garantir completa liberdade religiosa.’ Jordan então prosseguiu explicando em detalhes, da maneira mais razoável, como esta liberdade deveria ser respeitada. … Este discurso foi um evento marcante. … A Assembléia, em esmagadora maioria, repeliu as leis mais intolerantes que ainda desgraçavam o código da França. A liberdade de consciência obteve um sinal de triunfo.” (J. O. Lacroix, Religion and The Reign of Terror or The Church During The French Revolution. Carlton & Lanahan: New York, 1869.Tradução Livre, grifos no original.)

Esta foi a Revolução Francesa. Na próxima parte veremos outros momentos importantes da história, incluindo influências racionais trazidas pela religião e algumas consequências na sociedade moderna.

Parte 4

Nas seções anteriores introduzimos o assunto a partir da visão de Dawkins e a música Imagine de John Lennon. Também apresentamos relatos históricos de um período crucial : A Revolução Francesa, considerada marco da liberdade. Foi também um período que se destacou pela falta da religião. Vimos que a liberdade, igualdade e fraternidade não eram senão palavras bonitas durante o Reino do Terror. Seguiremos com mais momentos históricos importantes na temática.

Outros Exemplos de não Religião

Temos outros exemplos em nosso mundo de sociedades ou períodos da história em que a religião não estava no palco.

Na União Soviética, durante o período de governo de Stalin, estima-se que mais de vinte milhões de pessoas tenham morrido por causa de seus programas de governo e durante o período de perseguições políticas conhecido como “o grande expurgo”. No seu governo também houve um aumento de perseguição a homossexuais e combate à religião (https://youtu.be/Y4HKxYawyPw).

Durante a Segunda Guerra Mundial, o nazismo, embasado no Darwinismo Social (https://www.todamateria.com.br/darwinismo-social/) é outro exemplo do que a humanidade é
capaz, supostamente utilizando “razão” e “ciência”. Calcula-se que durante essa guerra tenham
Morrido entre 66 e 85 milhões de pessoas (http://segundaguerra.net/os-mortos-na-segunda-guerra-mundial-civis-e-militares/).

Para um mundo que, no século XIX, acreditava no progresso contínuo da humanidade a partir de uma idade da razão, nos defrontamos com a realidade de que a racionalidade humana e consciência moral não foram suficientes para proteger o mundo da injustiça, desigualdade e desrespeito pela vida e liberdade.

Progresso Real

Apesar dos problemas que o mundo enfrentou na Idade Moderna, podemos constatar que houve um real progresso em relação à Idade Média, principalmente em Ciência, Tecnologia e qualidade de vida. Acredita-se, comumente, que este progresso se iniciou com a redescoberta dos clássicos gregos e romanos e que o iluminismo e racionalismo, assim como o naturalismo, foram etapas importantes para o desenvolvimento científico.
A Enciclopédia Britânica considera que Newton foi o responsável pelo explosão de conhecimento em todas as áreas, o que, na realidade, foi o que mudou nosso mundo:

““Para o mundo macroscópico, o Principia foi suficiente. As três leis de Newton de movimento e o princípio da gravitação universal era tudo o que era necessário para analisar as relações mecânicas de corpos ordinários e o Cálculo provia as ferramentas matemáticas essenciais. …
“Aqui a obra seminal não foi o Principia, mas a obra prima de Newton sobre física experimental, a Opticks, publicada em 1704, na qual ele mostrou como examinar um assunto experimentalmente e descobrir as leis encobertas nele. Newton mostrou como o judicioso uso de hipóteses pôde abrir o caminho para adicional investigação experimental até que uma teoria coerente foi alcançada. A Opticks veio a servir como modelo, nos séculos 18 e 19, para a investigação do calor, luz, eletricidade, magnetismo e química dos átomos.” (L.P. Williams, History of science: The Rise Of Modern Science. Disponível em
https://www.britannica.com/science/history-of-science/The-rise-of-modern-science)

A Opticks, na verdade, começa com definições, consequências matemáticas dessas definições e, só então, verificação experimental. As investigações sobre a luz, magnetismo, eletricidade e química estão na base do desenvolvimento da Biologia, Eletrônica, Medicina, Informática, Indústria, etc.

Anteriormente a Newton, outros pioneiros, como Roger Bacon, Galileu e Da Vince já acreditavam que a Ciência se baseia em métodos matemáticos. (Galileu Galilei. Il Saggiatore; 1624. W.J. Meyer. Concepts of mathematical modeling. Mineola, New York: Dover Publications Inc., 1984.)

Não foi a Filosofia, nem a experimentação (já utilizada em certa medida pelos gregos) o que causou a tremenda explosão de conhecimentos que repercutiu em todas as áreas, mas o desenvolvimento de métodos matemáticos!

Estes pioneiros não fizeram parte de movimentos racionalistas, nem foram naturalistas, mas eram todos homens que acreditavam em Deus. Newton passou tanto tempo estudando a Bíblia quanto a natureza ( http://www.newtonproject.ox.ac.uk/texts/newtons-works/religious). Crer em Deus não significa colocar a razão de lado, ao contrário, aceitar a Deus na vida significa dar o melhor emprego a ela, como o fizeram os pioneiros da Ciência.

Por que o Mundo não é um Lugar Melhor?

Podemos constatar pela História, que o mundo não se torna automaticamente melhor pela existência de religião, muito menos, pela ausência dela. Por quê?

O problema não está na religião, nem na tentativa de ser racional, o problema está com o ser humano. O problema humano começou no início da humanidade, com as escolhas que nossos ancestrais fizeram e com as que continuamos a fazer depois deles. A história humana é como o caso de pessoas que se tornam viciadas em algo: antes de cair no vício a pessoa era livre e poderia escolher o que fazer com a sua vida. No momento em que ela usa de sua liberdade para iniciar na estrada de algum vício, ela envereda por um caminho do qual não consegue mais sair sozinha, perde a liberdade. Esta foi a história de nossos ancestrais e nós a estamos repetindo. Assim como o uso de drogas e bebidas altera o senso de autocrítica, escolher o caminho da transgressão moral escraviza e cega o praticante.

“Quem pode entender o coração humano? Não há nada que engane tanto como ele; está doente demais para ser curado.” (Jeremias 17:9.Nova Tradução na Linguagem de Hoje)

Sem perceber a realidade do que o texto acima diz, a humanidade prossegue culpando a religião, a ideologia, os sistemas políticos e econômicos, as formas de governo e mesmo alguma coisa abstrata como a ganância e o egoísmo, enquanto exalta a máxima de “siga seu coração”. O problema humano é mais profundo do que meramente a adoção de religiões, sistemas políticos e ideologias errados ou mesmo um conjunto de ideias e sentimentos distorcidos.

O período medieval não foi um período em que o cristianismo dominou o mundo, mas um período em que a religião cristã se tornou um misto do que a Bíblia ensinava com a filosofia e práticas religiosas de gregos e romanos (http://www.criacionismo.com.br/2018/04/por-que-entender-o-que-significa.html).

Então, a prática da religião se tornou como o ser humano que a praticava, uma mistura do que vem de Deus com os resultados do afastamento dele. A filosofia e razão humanas também são uma mistura destas duas coisas. E o problema é que estas são duas coisas que não se misturam, como o óleo e a água. Na prática, o mal (mau funcionamento das coisas que foram usadas em desacordo com o manual do fabricante) é o resultado desta tentativa de mistura.

Conclusões

Algumas pessoas, como Dawkins e Lennon, acreditam que o ser humano seria bom automaticamente se não existisse religião para atrapalhar. Outros creem que a função da religião é apenas orientar no caminho do bem que as pessoas precisam seguir para adquirirem por si mesmas um estado melhor. Creem que seguir o coração (no sentido de sentimentos e intuições) seria um caminho seguro porque o coração é naturalmente bom. Acham que o problema são as filosofias, ideologias ou sentimentos e ideais ruins que vêm de fora e contaminam o coração.

O problema é não reconhecer que a escolha do mal teve um efeito tão devastador na capacidade humana de autocontrole e autopercepção quanto o efeito do uso de drogas.

Desta forma, as pessoas podem enganar-se a si mesmas de tal modo a acreditarem que estão estabelecendo a liberdade e igualdade enquanto destroem, na prática, tudo o que estas palavras significam. Podem acreditar que estão “fazendo ciência”, quando é apenas um tipo mais sistematizado de observação, experimentação e interpretação filosófica, ao invés do uso de métodos matemáticos explícitos para cada etapa do processo, o que permitiria resultados que ultrapassariam a intuição e o raciocínio filosófico, como é o caso da Relatividade e Mecânica Quântica. O uso de métodos matemáticos para o ser humano em oposição ao raciocínio qualitativo é como um cego fazer uso de um guia ao invés de preferir tatear no escuro.

O problema do mal, semelhante ao que ocorre com o uso de drogas, é que ele cega para os problemas reais e para os métodos de cura.

O seguinte texto indica a única solução para o problema do mal:

“Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. … Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.” (João 8:34 e 36.)

[1] A palavra “religião” vem do latim “religio” ou “religare” (“conectar-se”, com Deus, por exemplo). Um amigo prefere a definição de Chesterton, para o qual a religião seria um conjunto de dogmas, ou “constatações a respeito do mundo de onde todo o pensamento surge”. Segundo esta definição, ateísmo também seria religião.