Reproduzimos abaixo a interessante entrevista concedida pelo conhecido físico brasileiro Marcelo Gleiser a Maurício Tuffani, disponibilizada no “site” da revista Galileu, com o título de “Abaixo os Tabus”.

O subtítulo da entrevista é bastante significativo, e deixa transparecer a focalização dada pelo entrevistado, com a qual sem dúvida concordamos plenamente: “O físico brasileiro Marcelo Gleiser afirma que o dogmatismo científico é tão inflexível quanto o da religião”. Na realidade, sob certos aspectos, em função desse próprio dogmatismo, a ciência acaba se revestindo de muitas das características que são inerentes à maior parte das religiões, como por exemplo a intolerância.

A entrevista é introduzida pelo texto seguinte:

A rigidez da maior parte dos cientistas para lidar com assuntos desconhecidos é um dos alvos da crítica do físico brasileiro Marcelo Gleiser, professor de uma das mais conceituadas faculdades norte-americanas, o Dartmouth College, no pequeno Estado de New Hampshire. Seu último livro “O Fim da Terra e do Céu”, lançado no ano passado, foi o vencedor do Prêmio Jabuti 2002 e acaba de ser publicado nos Estados Unidos com o título “The Prophet and the Astronomer” e já vem despertando repercussões entre os críticos. Nesta entrevista realizada em São Paulo, Gleiser, que é autor do “best seller” “A Dança do Universo”, que lhe valeu também o Prêmio Jabuti 1998, falou também sobre outros temas polêmicos, como o criacionismo, e o crescimento da mentalidade extremista apocalíptica.

E então seguem as perguntas e as respostas da reportagem:

Galileu – Seu livro “O Fim da Terra e do Céu” foi escrito antes dos ataques terroristas de 2001. Mas esses acontecimentos têm sido abordados em suas palestras sobre a obra. Por que?

Marcelo Gleiser – Eu tenho puxado bastante para esse lado, principalmente nos Estados Unidos, pois nesse livro eu falo muito sobre as seitas apocalípticas, o extremismo religioso e como as pessoas podem matar ou se matar pela fé. Para muitos extremistas, o martírio faz parte da salvação, da redenção final. Muitas pessoas continuam a pensar desse jeito.

Galileu – Apesar desse enfoque, seu livro segue a linha de seus trabalhos anteriores que é a da divulgação científica. O que você acha que a divulgação científica pode trazer para esta virada de século influenciada pelo espírito apocalíptico?

Gleiser – Eu sempre digo, inclusive nesse livro, que a ciência não promete a salvação eterna. Ela pode, através da reflexão sobre o conhecimento da natureza, dar às pessoas condições para uma emancipação individual, ou uma liberdade pessoal. Ela oferece uma capacidade de emancipação racional, uma capacidade de cada pessoa decidir sobre a sua vida. Com ela, não é preciso depender da fé para alguém escolher qual vai ser o seu destino. E a fé, muitas vezes, só pode oferecer uma alternativa dogmática, como a recompensa em outra vida, muitas vezes por um ato.

Galileu – Por outro lado, esse dogmatismo existe também no meio científico, onde muitas vezes não se reconhecem limitações da própria ciência, e isso acaba fortalecendo os argumentos contrários …

Gleiser – Concordo plenamente. Tenho feito uma verdadeira cruzada junto a colegas cientistas, principalmente nos Estados Unidos, que seguem uma linha quase reacionária, que é a do dogmatismo científico. Não se fala em espiritualidade. É um assunto proibido, um tabu. Para eles, a sociedade não deveria dar espaço para qualquer coisa que tenha a ver com emoções ou com o que não esteja relacionado aos processos da descoberta científica. Essa é a linha de Carl Sagan e de Lawrence Krauss, o autor do livro “A Física de Jornada nas Estrelas”. Essa atitude tem efeito extremamente negativo com as pessoas religiosas, tratando-as de uma forma tão inflexível quanto o dogmatismo que se pretende combater. Tive uma discussão com Krauss sobre os criacionistas – que pretendem combater o ensino da teoria da evolução nas escolas – em que ele disse que nem aceita debater com eles para não lhes dar legitimidade. E eu repondi que isso é errado, pois é justamente a falta desse diálogo que vai dar oportunidade aos criacionistas para convencer cada vez mais pessoas.

Galileu – Por falar em criacionismo, essa dputrina tem sido revigorada até mesmo nos meios acadêmicos pela teoria do “Intelligent Design”, ou Planejamento Inteligente, que, sem recorrer aos textos bíblicos, tenta comprovar que a origrm e a evolução do Universo e dos seres vivos foram guiadas por um ser superior. O que o sr. acha dessa teoria?

Gleiser – Essa é a teoria dos criacionistas mais sofisticados. Eles dizem que a natureza funciona de uma forma muito precisa, harmoniosa demais, para que seja fruto de um mero acaso e, portanto, tudo só pode ter surgido com um “design”, ou melhor, um planejamento inteligente. Tem vários problemas nessa visão. Um deles é que o ser humano é fruto de um longo processo evolutivo que o dotou de um córtex cerebral capaz de perceber semelhanças, simetrias e padrões. Essa capacidade tornou o homem apto a sobreviver em um ambiente hostil. Somos especialmente preparados para reconhecer padrões e somos recompensados por nossa química cerebral – e isso vale também para o reconhecimento da beleza. A explicação criacionista inverte a ordem das coisas. Nossa inteligência consiste em reconhecer padrões na natureza e construir a ciência sobre esses padrões, podendo escapar muitos aspectos que não percebemos – o que significa também que a ciência não detém a verdade sobre tudo.

Galileu – Voltando ao tema do extremismo havia pessoas com conhecimento tecnológico de nível superior entre os terroristas que participaram dos atentados do ano passado, mas esse conhecimento não os impediu de cometer uma ação suicida. Por que essa mentalidade não diminuiu nos últimos anos com o crescimento da divulgação científica?

Gleiser – Esse conhecimento nada pode fazer com a cegueira causada pela fé extremista. Ele não passa de um meio, e acaba servindo para cumprir missões fanáticas em busca da redenção final.

Vários aspectos desta entrevista merecem ser considerados, exatamente no contexto da divulgação científica, dos extremismos (de maneira geral), e das posições filosóficas relativas à questão das origens. Assim, permitimo-nos abordar rapidamente alguns desses aspectos, para melhor elucidar nossos leitores sobre o que de fato está envolvido na questão das origens.

Primeiramente, é de se louvar a atitude do entrevistado quando alerta quanto à incoerência do dogmatismo científico, e quando verbera a atitude preconceituosa de cientistas e divulgadores da ciência que não permitem abertura de espaço para idéias contrárias ao do “establishment” científico.

Entretanto, pode-se observar que, lamentavelmente, o entrevistado mostra completa falta de lógica em seu raciocínio circular (tautologia, ou círculo vicioso) quando, ao falar sobre o “Intelligent Design”, aponta um dentre vários problemas que a seu ver existem nessa visão”. De fato, seu raciocínio parte da premissa de que “o ser humano é fruto de um longo processo evolutivo”, aceitando, portanto, preliminarmente a própria tese que deseja comprovar mediante a crítica à posição contrária. E, ainda mais, declara que a “explicação criacionista inverte a ordem das coisas”, assumindo portanto de forma incoerente (e dogmática) a posição de que a evolução é um fato inquestionável, sem atentar para a argumentação científica apresentada pelos criacionistas a favor exatamente de uma outra ordem das coisas. Incoerente, sim, porque embora critique o dogmatismo científico, essas suas declarações enquadram-se claramente no quadro geral do dogmatismo científico vigente!

A questão da fé constitui outro ponto a ser ressaltado na entrevista. A declaração de que “com ela (a ciência) não é preciso depender da fé …“ ignora que a própria ciência baseia-se em numerosíssimos atos de fé – fé em que a própria natureza tem um comportamento que obedece certas leis que são passíveis da investigação científica, fé em hipóteses que são feitas para construir teorias que venham depois a ser testadas, fé na veracidade daquilo que estamos observando com nossos sentidos, fé na estrutura conceitual que adotamos para o delineamento e a condução de nossos experimentos, fé nos paradigmas ou postulados que aceitamos previamente como base para o desenvolvimento de nossas pesquisas da natureza, etc.

O próprio entrevistado demonstra fé em que sua posição é mais consentânea do que a de Carl Sagan ou Lawrence Krauss, embora por outro lado não demonstre fé na posição de numerosos outros cientistas, como por exemplo Michael Behe e Antonino Zichichi.

A nosso ver, a declaração que melhor se ajusta aos princípios básicos propugnados pelo entrevistado, de forma coerente, sem dúvida é a de que “Nossa inteligência consiste em reconhecer padrões na natureza e construir a ciência sobre esses padrões, podendo escapar muitos aspectos que não percebemos – o que significa também que a ciência não detém a verdade sobre tudo” Só temos a lamentar que não é essa a posição assumida hoje pelos defensores do evolucionismo!

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